segunda-feira, 30 de março de 2009

O Que é Filosofia Medieval? (Carlos Arthur Nascimento)

[resumo por: Lia Freitas Oliveira¹]

O autor começa falando que em vários lugares escutamos falar da Idade Média. Na filosofia, na moda, nos livros de história e em muitos outros lugares. Mas, apesar de ser usada como referência por muitos, a Idade Média é apenas um período inventado por um pedagogo alemão chamado Christoph Keller, que definiu a divisão da história ocidental em antiga, medieval e moderna. Junto com essa divisão veio também a Idade Média foi o período das trevas no âmbito intelectual.

Contudo, este posicionamento é questionável e não aceito por outros estudiosos, visto que o período medieval teve uma vasta produção intelectual por parte de muitos homens, ainda hoje estudados, como Santo Agostinho e outros de também grande importância para a formação do pensamento cultural da sociedade cristã do Ocidente.

De fato, fica de difícil entendimento considerar a produção intelectual da Idade Média como “científica”, já que estamos direcionados a acreditar que ciência e religião não se misturam.

Os filósofos medievais se auto distinguiam dos filósofos pagãos – os que vieram antes de cristo – e dos infiéis – os que vieram depois de cristo e não eram cristãos. Intitulavam-se de “os santos”, hoje, sendo denominados de teólogos.

Baseados nas doutrinas bíblicas, assim nasceram as teorias da filosofia medieval. O autor cita o exemplo do apóstolo Paulo, que em diferentes passagens bíblicas, usa de estratégias opostas em suas pregações. Aos gregos, no livro de Atos dos Apóstolos, prega as Boas Novas de maneira racional e próxima à linguagem filosófica grega. Já na primeira carta aos Coríntios, usa de uma linguagem mais espiritualista e transcendente, tratando-se de estar falando a judeus pertencentes às baixas camadas da população. Daí nascem duas linhagens de cristãos: os que tomam influência da cultura pagã e os que crêem de maneira mais espiritualista, não aceitando a entrada de secularismos na fé bíblica. Da primeira linhagem saíram os homens que constituíram suas teorias como base do pensamento ocidental por longos séculos. Como principal referência desse sincretismo entre fé e razão temos Santo Agostinho.

Agostinho sofreu grande influência da idade antiga. Formulou seu pensamento sobre uma síntese de elementos da cultura antiga com o cristianismo, trazendo aos posteriores um ideal cultural e uma orientação filosófica.

Esse ideal cultural Agostinho toma de uma passagem bíblica do livro de Êxodo, em que Deus manda aos judeus que antes da diáspora tomem os utensílio de valor dos egípcios, pois aqueles bens eram seus por direito, era o pagamento de tantos anos de trabalho não recompensado. A partir desse trecho, Agostinho constrói a idéia de que os cristãos deviam espoliar-se dos bens culturais pagãos, já que os antigos não tinham direito de posse destes bens, pois ultilizavam-nos mal, com o fim de cultuar os seus falsos deuses.

Quanto à orientação filosófica, Agostinho formulou com base no livro do profeta Isaías capítulo 7, que diz: “se não credes, não compreendereis”, a necessária interação entre fé e razão. Segundo ele, para crer é preciso entender que se deve crer e que o objeto da minha crença não é algo absurdo e também é preciso entender o que eu creio, no caso a palavra de Deus.

Dentro desses parâmetros de relação entre fé e razão, a filosofia medieval foi evoluindo. Para que essa evolução se tornasse concreta, os estudiosos utilizaram-se de instrumentos na formulação de seus pensamentos. Em diferentes períodos, utilizaram-se da gramática, da dialética e da filosofia como instrumentos de auxílio.

O uso dessas artes liberais começou com o império de Carlos Magno, que se preocupou em incentivar o saber e a instrução no seu reino, através do monge formado em York de grande conhecimento em cultura clássica, o ilustre Alcuíno.

Alcuíno trouxe a influência clássica aos estudos teológicos de sua época como auxílio na compreensão dos textos bíblicos. Usava-se das artes liberais da antiguidade de todos os tipos: o trívio, que se preocupava com os vários aspectos da palavra (gramática, dialética, retórica) e o quadrívio, que se preocupava com disciplinas de caráter matemático (aritmética, geometria, música, e astronomia).

A partir de Alcuíno começa, mesmo que de maneira bastante discreta, a preocupação dos medievais em utilizar dessas artes para uma melhor interpretação dos textos sagrados.

Houve no final do século V d.C. um autor de origem desconhecida chamado Dionísio. Na época, pensava ser ele o Areopagita que se converteu pela pregação de Paulo no Areópago em Atenas. Por isso foi um autor muito prestigiado pelos medievais, pois o consideravam um herdeiro direto da geração de Cristo.

Muitos homens traduziram suas obras, mas o mais fidedigno e que promoveu os escritos de Dionísio na teologia ocidental foi João Scot Erígena. Ele foi o intelectual mais notável de seu século.

Scot Erígena concebia o trabalho intelectual da filosofia como uma “fé” que procura a inteligência através da interpretação das Escrituras. Buscou também entender a natureza formulando instâncias dialéticas. Sua forma de pensar assemelha-se a Anselmo de Catuniária e Pedro Abelardo.

Muitos utilizaram-se da dialética em seus estudos no período medieval, mas nem todos. Outros eram totalmente contra à utilização da dialética, como São Pedro Damião que dizia que usar da dialética para interpretação das escrituras era como misturar dançarinas de teatro com virgens puras. Segundo ele, o papel máximo que as artes liberais e a filosofia podem desempenhar é de “serva da teologia”.

Voltando aos teólogos mais “liberais”, Santo Anselmo de Ctuniária foi um deles. Anselmo trouxe de volta o “crer para entender” de Agostinho de maneira mais equilibrada. Entendia a fé como meio de buscar a compreensão. Na sua obra Proslogion, Anselmo busca de várias formas compreender Deus através de uma razão pautada na fé. Isto se confirma no trecho: “... por teu dom, eu anteriormente cri, já compreendo de tal modo, por tua iluminação, que se não quisesse crer que tu és, não poderia não compreender”.

Assim, Anselmo se esforça em seus argumentos para provar a existência de Deus, que acaba por colocar em relevo o caráter absoluto de Deus que é a sua existência em si.

No século XII, ocorreu uma espécie de renascimento na Europa ocidental. Muitas coisas passaram por mudanças e melhorias. Novas técnicas foram adquiridas na agricultura e na pecuária, o comércio e as cidades renasceram, fazendo com que as escolas se mudassem do campo para as cidades. Além dessas transformações, houve também melhorias nos métodos dos estudos teológicos da época. Melhorias estas que perduraram por vários séculos.

Um dos grandes influenciadores dessas transformações foi Pedro Abelardo. Sua principal contribuição encontra-se numa obra chamada “Sim e Não”, em que Aberlado utiliza-se de contradições e da dialética afim de levar à reflexão e ao descobrimento da verdade. Pois, para ele, a dúvida nos incita à pesquisa e esta nos leva à verdade.

Abelardo discute as “autoridades” (textos “polêmicos” dos Padres da igreja), sob a luz da dialética, dando origem às questões teológicas. Costumava colocar tudo em questão, inclusive a existência de Deus. Seus questionamentos foram indispensáveis na formação do novo método de trabalho intelectual dos séculos posteriores.

Outro grande nome de importância na formação desse renascimento metodológico foi Pedro Lombardo, que escreveu a obra Os quatro livros das sentenças, em que este novo método se consagrou. Foi adotada como texto oficial para o estudo da teologia durante quatro séculos. Lombardo utiliza-se de maneira moderada da dialética, não tão indagativo quanto Abelardo, nem tão radicalmente contra as artes liberais como São Pedro Damião. Por isso teve tanta aceitação durante tanto tempo.

As escolas de Chartres e de São Vítor, apesar de não tão citadas, também tiveram uma contribuição para os estudos de seu tempo. As duas utilizavam-se do trívio e do quadrívio para a investigação das sagradas Escrituras. A de Chartres predominava o uso do quadrívio. Da escola de são Vítor saíram nomes como Hugo, escritor da obra VII livros da erudição didas caliça ou Didascálion. Esta lembra a Doutrina cristã de Agostinho. Por conta disso, Hugo foi chamado de “novo santo Agostinho”. Ele dizia que as artes liberais devem ser estudadas em função da filosofia e esta em função da teologia que deve, por sua vez, conduzir à beatude.

Notamos que o espírito questionador esteve presente como mola propulsora dos trabalhos intelectuais do século XII. Percebe-se quando, mais uma vez, levanta-se a questão, até hoje discutida, sobre os gêneros e as espécies feita por Porfírio há vários séculos atrás. A pergunta era se gêneros e espécies, os universais, existem como realidade fora do nosso pensamento ou são puro produto da nossa atividade mental?

Muitas correntes de pensamento surgiram por conta dessa pergunta. Uns diziam que os universais tinham uma certa existência fora do pensamento (realistas), outros diziam que os universais eram meras palavras (nominalistas). Abelardo foi o primeiro a tratar desse questionamento detalhadamente. Tomou posição contra as correntes vigentes e fez sua apropria interpretação sobre o assunto.

Apesar de grandes avanços terem ocorrido no tempo de Abelardo, na época de Tomás de Aquino as coisas estavam bem mais evoluídas, facilitando a vida dos estudiosos do seu tempo. Alguns fatores são responsáveis por essa diferença: as traduções do grego e do árabe, o surgimento das universidades e a fundação das ordens mendicantes.

As traduções foram de suma importância para o progresso dos estudos. No tempo de Abelardo, o acervo das obras clássicas era bem limitado. Resumia-se em poucas obras traduzidas de maneira rude e cheia de termos apenas transliterados. A partir do século XII, houve uma invasão de traduções do grego e do árabe na Europa ocidental. Várias obras de Aristoóteles e de outros autores foram traduzidas. Isso ajudou sensivelmente o andamento dos estudos feitos após esse desenvolvimento e melhoramento do acervo literário.

As obras traduzidas vieram a ser guardadas nas universidades: instituições surgidas na primeira metade do século XIII. Funcionavam como uma corporação de ofício, onde se agrupavam profissionais do estudo de específicos assuntos para desenvolverem seus trabalhos e defenderem seus interesses. Por exemplo, uma universidade podia dedicar-se somente à teologia, ou só ao direito. As mais importantes do século XIII foram as de Paris, Oxford e Bolonha.

Lecionar e disputar era o papel de todo mestre. Isso foi importante para a assimilação dos textos traduzidos recém chegados na Europa. Ao lecionar o mestre explicava e comentava os textos escolhidos para o fim específico de seu curso. Já a disputa surgiu modelada a partir das questões nascidas no século XII. Era uma espécie de competição entre os estudiosos, em que eram discutidos problemas vigentes, onde defensores e oponentes do assunto argumentavam a fim de chegar a uma conclusão, que era dirimida pelo mestre. As disputas eram de dois tipos. Tinha a questão disputada (a mais comum), em que o assunto era previamente estabelecido e a questão quodlibetal, onde o tema era livre e no caso, bem mais arriscada.

Essas atividades foram muito úteis para a formação da produção literária da época. As disputas eram registradas por escrito. As consultas feitas aos mestres resultaram nos opúsculos. Dos textos usados para lecionar, os mestres faziam os comentários. Mas em todos esses tipos de obras, faltava certa organização e concisão na abordagem do assunto. Dessa necessidade surgiram as sumas, obras de caráter enciclopédico, pedagógico e sintético, muito peculiar à Idade Média.

Além de todo esse renascimento intelectual ocorrido nos séculos XII e XIII, houve também um renascimento religioso. Muitos voltaram a buscar a simplicidade e espiritualidade da igreja primitiva, retomando uma “vida postólica”. Essas tendências reformistas foram mal vistas pela igreja católica, sendo consideradas heréticas. Por estarem crescendo em adeptos, a igreja aceito algumas dessas ordens mendicantes. As mais importantes foram as dos Franciscanos e as dos Dominicanos, ambos de precioso papel na vida universitária dos séculos seguintes.

Voltando à questão dos textos traduzidos nos séculos XII e XIII, não foi tão simples a entrada destes textos na Europa. Eles não só causaram uma movimentação no âmbito intelectual, mas também nos clérigos católicos. Até antes desse renascimento, os textos apresentados para estudo e auxílio na compreensão das Escrituras, eram poucos e não mostravam ameaça à fé cristã. Porém, com a tradução de textos como os de metafísica, ética e sobre a natureza de Aristóteles, trouxeram pontos conflituosos à doutrina cristã. Sem contar que essas obras, muitas delas, vinham com comentários de árabes e judeus como Avicena e Avicebron, respectivamente, o que acentuava a discordância de pontos de vista. Assim a igreja como defensora da fé, proibiu a leitura de alguns desses livros. Isso gerou um conflito entre universidades e clérigos da Igreja. Ma s a insatisfação de mestres e estudantes não foi suficiente. Em 1277, o bispo de Paris, Estêvão Tempiere, condenou 219 teses, proibição desta vez bem mais ferrenha e castradora.

Durante esse vasto período de renascimento cultural que precedeu a proibição católica, muitos nomes importantes surgiram: Boaventura, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Roger Bacon e Siger de Brabante. Fora Roger Bacon, que era da universidade de Oxford, os outros quatro vinham da universidade de Paris. Discordavam entre si não pelas suas influências acadêmicas, mas por pontos de vista pessoais.

Siger, mestre secular da faculdade de artes, tinha verdadeira veneração aos filósofos, em especial Aristóteles. Considerava que “filosofar é indagar simplesmente o que pensaram os filósofos e principalmente Aristóteles...”. Separava a filosofia da fé, dizendo que a verdade na revelação cristã.

Tomás de Aquino se opõe ao pensamento de Siger. Ele não separava a busca da intenção do autor e a busca da verdade. Assim, Tomás não separa filosofia e teologia, porém não as confunde.

A cerca disso, Boaventura dizia:

“Quando, de dois elementos, um passa ao domínio do outro, não se juga que haja mistura, mas sim quando a natureza de ambos se altera. Daí, aqueles que se servem dos ensinamentos filosóficos da sagrada doutrina reconduzindo-os ao acatamento da fé, não misturam água ao vinho, mas transformam a água em vinho.”

Já para Tomás de Aquino, na mistura entre filosofia e teologia, não haveria deturpação de ambas as partes, pelo contrário, a filosofia se estabeleceria em seu sentido pleno.

Enfim, os teólogos do século XIII e dos seguintes, apesar de suas divergências, tinham como ponto em comum que suas problemáticas teológicas tinham explicações filosóficas em si. A crítica filosófica dos séculos XII e XIV é sempre comandada por motivos teológicos.

As divergências seguem sempre a mesma linha: os que integram filosofia e teologia e os que separam as duas.

No século XIV acontece entre Duns Scot e Guilherme de Ockham, o ultimo sendo mais veemente quanto a separação entre filosofia e teologia. Os dois possuidores desse espírito “desconfiado” surgido após a condenação de 1277, denunciavam a impossibilidade de apoiar os dogmas cristãos sobre a filosofia.

Preparando terreno para o renascimento científico que viria no século posterior, surgiram os “calculadores”, que faziam suas análises científicas sobre física derivada de contextos puramente teológicos. Muitas de suas teorias sobre física foram usadas e desenvolvidas por Galileu no século XVII.

Por fim, o declínio da teologia medieval no final do século XIV era notório. O contexto histórico era complicado. Os intelectuais da Idade Média viam-se cansados de tentar conciliar ou separar filosofia e teologia, assim como cita Étienne Gilson:

“Muitos cristãos do século XIV estavam simplesmente fartos de todo este negócio. Eles não tinham o que fazer com a teologia especulativa, eles não se perderiam nos obscuros e inseguros mistérios da união mística; o que eles precisavam era de vida cristã prática direta e de nada mais”.

Concluímos que a filosofia medieval trouxe aos dias de hoje influências não só no âmbito religioso, mas também no cultural, filosófico e científico, sendo de total relevância o seu estudo e compreensão para o entendimento eficaz das teorias filosóficas modernas e contemporâneas.

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1. Lia Freitas Oliveira é aluna de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará.

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