segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Problemas de Gênero (Judith Butler)

Este foi um resumo do Prefácio + Capítulo 1 produzido pelo Grupo de Estudos de Epistemologia Feminista do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS), da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2013.2.[1]

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as    pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mais que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra de montão.
                                                                                 Guimarães Rosa[2]

            Partindo do prefácio, Judith Butler (2011) nos traz questões que foram seminais para a elaboração do livro, nos incitando a pensar que “problemas são inevitáveis e nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de cria-los, a melhor maneira de tê-los” (p. 7). Não é a toa que o livro chama-se “Problemas de Gênero” e tem como subtítulo “Feminismo e subversão da identidade”.
            Para Butler, as noções de gênero, sexo e identidade são problemáticas que devem ser investigadas ao modo da “genealogia”. Ela afirma: “A crítica genealógica (...) investiga as apostas políticas, designando como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos. A tarefa dessa investigação é centrar-se – e descentrar-se – nessas instituições definidoras: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória[3]”.
            Duas das questões de Butler apresentadas no prefácio são: “que formas de políticas surgem quando a noção de identidade como base comum já não restringe o discurso sobre políticas feministas? E até que ponto o esforço para localizar uma identidade comum como fundamento para uma política feminista impede uma investigação radical sobre as construções e normas políticas da própria identidade?” (p. 9-10).
            Butler questiona o feminismo dado como o movimento de mulheres brancas de classe média, dando abertura para a possibilidade de se pensar políticas ditas feministas para além da margem dessa identificação: mulher-branca–classe média. Butler abre aqui o questionamento sobre a própria necessidade de identificação a priori,para se lutar por melhorias na vida, para além da repressão e disciplinamento da vida regrada e necrófila[4]. (Liberdade estaria sobretudo fora das margens, nas possibilidades não-ditas e não catalogáveis até então? – lembrando que o gênero é um estar sendo[5]).
            A autora afirma também que seu texto possui muito mais fontes do que as que apresenta e que seu objetivo no livro é: “de maneira geral, observar como as fábulas de gênero estabelecem e fazem circular sua denominação errônea de fatos naturais[6]” (p. 12).
            O Capítulo 1: “Sujeito do sexo/gênero/desejo”, se divide em seis tópicos: “1. “’Mulheres’ como sujeito do feminismo; 2. A ordem compulsória do sexo/gênero/desejo; 3. Gênero: as ruinas circulares do debate contemporâneo; 4. Teorizando o binário, o unitário e além; 5. Identidade, sexo e a metafísica da substância; 6. Linguagem, poder e estratégias de deslocamento”.
No capítulo 1, a autora, através de sua “genealogia crítica”, questiona a própria noção de categoria das “mulheres” como sujeito político do feminismo, nos dando com isso possibilidades de pensar o feminismo como movimento politico que não exige um sujeito pautado em parâmetros prefigurados, como até então se pensava. (sobretudo um sujeito único e universal ligado às mulheres). Butler nos diz que: “a tarefa é justamente formular, no interior dessa estrutura constituída [jurídicas da linguagem e da política], uma crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engrandecem, naturalizam e imobilizam”, como as categorias de homem e mulher. (p. 22). Portanto, não se deve presumir, nem mesmo o feminismo, os sujeitos, ou identidades, homem ou mulher (“mulheres”).

Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.




[1] Resumo elaborado por Bruno Duarte, Fernando Duarte, Indira Guedes, Jana Lisboa, Marcelle Silva e Renan da Ponte.
[2] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 23.
[3] O termo “falocentrismo” foi cunhado pro Freud para significar o poder do gênero masculino sobre o gênero feminino, e desenvolvido por Lacan para significar a construção das categorias sexuais por meio da linguagem. (Irigaray, 1978). Já o termo “heterossexualidade compulsória” foi apontado primeiramente por Adrienne Rich (1970) que faz asserções acerca dos mecanismos de dominação e de violência, sobretudo, contra as mulheres, para a manutenção da heterossexualidade obrigatória.
[4] O termo necrófila aqui utilizado tem origem em Fromm, no seu livro A Arte de Amar, e mais especificamente empregada no O Coração do Homem (1981), nos quais o autor quer deixar claro como não pode haver verdadeira libertação sem um real e profundo sentimento de amor pelos homens, sendo esse “sentimento de amor”, uma tentativa de construção do ser em comunhão, livre, da sociedade, não mais opressora e que para isso, é preciso uma atitude biófila, de amor a vida, a si, a existência, ao outro, em detrimento da necrofilia, que traz a vontade de destruição, ligado à morte, a repressão e falta de responsabilidade para com o outro.
[5] Butler deixa claro no final do capítulo 1 que “O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida”, ou seja, ser de um “determinado” gênero, é uma indicação de práticas performáticas que se constroem e se perpetuam nas repetições dosperformers.
[6] No que diz respeito às “fábulas”, estas podem ser pensadas como "ficções de gênero", construções socioculturais que ganham legitimidade e amplitude dentro de determinado contexto (também sociocultural) que atrelam o gênero à natureza. Ou seja, tornam "natural" aquilo que é arbitrário.

terça-feira, 16 de julho de 2013

“ORIGENS DO TOTALITARISMO” DE HANNAH ARENDT.

FERNANDO LUIZ DUARTE JUNIOR

RESENHA DO CAPÍTULO 4 (Ideologia e terror: uma nova forma de governo) DA PARTE III (Totalitarismo) DO LIVRO “ORIGENS DO TOTALITARISMO” DE HANNAH ARENDT.


            Hannah Arendt nasceu em Hannover, Alemanha, em 1906. Estudou nas universidades de Marburg e Freiburg, e obteve seu doutorado em filosofia na universidade de Heidelberg, sob a orientação de Karl Jaspers. Em 1933 fugiu para Paris e em 1941, por decorrência da deflagração da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde faleceu em dezembro de 1975. Professora visitante em várias universidades, Arendt fez sua carreira acadêmica na New School for Social Research de Nova Iorque. É autora de vários livros, dentre eles: “Origens do Totalirarismo”, “A Condição Humana”, “Entre o Passado e o Futuro”, “Homens em tempos sombrios”, “Eichmann em Jerusalém”, “Responsabilidade e julgamento” e “Sobre a revolução”.
            Nas aulas de Ciência Política III, do semestre 2013.1, ministrada pelo professor Fabio Gentile, no curso de C. Sociais da UFC, lemos o capítulo 4 da terceira parte do livro “Origens do Totalitarismo” da filósofa alemã Hannah Arendt. Neste capítulo, com a ajuda das aulas, vimos que a autora preocupa-se em encontrar uma “essência” para o regime totalitário. Ela questiona se existe uma “natureza”, no sentido de essência, do governo totalitário, analisando para isso o governo nazista, na Alemanha, e o stalinista na União Soviética.
            Podemos encontrar no início do capítulo um esboço de definição para o que seja Totalitarismo, no sentido de: forma de governo que transforma as classes em massa e opera a partir de um sistema unipartidário. Lembrando que a transformação das classes em massa, seria uma tentativa de “organização” do Partido de forma hegemônica e unívoca das nuances de possibilidades de existência, atuação e políticas das pessoas em suas particularidades. A perspectiva é sempre a totalização, a universalização de um sistema de pensamento e organização pautado na lógica do que Arendt chama “Um-Só-Homem” visando a realização da lei da Natureza ou da História.
            Arendt quer nos indicar uma nova perspectiva sobre os governos totalitários, tentando entendê-los, como operam, por que vias, quais seus objetivos e se possuem uma “natureza”. Com isso, ela escreve:

O totalitarismo nos coloca diante de uma espécie totalmente diferente do governo. (...) Mas não opera sem a orientação de uma lei, nem é arbitrário, pois afirma obedecer rigorosa e inequivocamente àquelas leis da Natureza ou da História que sempre acreditamos serem a origem de todas as leis. (ARENDT, 1989, p. 513)

            Arendt quer nos mostrar que o que pensamos do totalitarismo como um governo arbitrário, que impõe força e ilegitimidade, está equivocado. Os regimes totalitários operam por vias legais e pela “vontade” da humanidade no progresso natural ou histórico universal.
            Essa “vontade” da humanidade no progresso natural ou histórico universal, nos diz Arendt que seria, acima das vontades dos homens, o estabelecimento do reino da justiça na terra, algo que está para além das partes, que visa o todo, que visa, não o benefício de um ou de outro, mas o progresso da humanidade, retirando assim toda e qualquer culpabilização das direções do Partido e de seus julgamentos. Neste sentido ela escreve (1989, p. 514-515): “[o totalitarismo] promete libertar o cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano; e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade a encarnação da lei.”
            Com isso, o emprego do terror, torna-se legítimo para que assim torne-se uma essência dessa forma de governo, que perspectiva uma finalidade grandiosa para além dos próprios homens. Arendt nos diz (1989, p. 517): “[o principal objetivo do terror é] tornar possível à força da natureza ou da história propagar-se livremente por toda a humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea.” Por tanto, as únicas ações desejáveis, recomendáveis e não penalizadas, são aquelas que visam libertar as forças da natureza e da história para que operem livremente, tendo assim, o terror como um meio, e não um fim. No mesmo sentido escreve (1989, p. 517): “O terror é a legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobre-humana, seja a Natureza ou a História”.
            É possível vermos que a falta de liberdade dos homens particulares, cerceados pelo Partido, é uma tentativa de fazer valer a liberdade verdadeira, que é Natural e Histórica, e que com isso, identificando nas teorias de Darwin e do próprio Marx, uma legitimação da exclusão de raças ou classes, tidas como inferiores, como fundamental para a evolução da humanidade de forma universal, histórica e natural.
            A análise de Hannah Arendt nos dá elementos para perceber essa faceta “positiva” das organizações totalitárias. Saindo do lugar comum de opressão, que nos dá características de cerceamento da liberdade individual de forma negativa, donde os opressores são identificados moralmente como maus, desleais, ilegítimos; que não ocorre por exemplo no governo nazista, nem no stalinista, onde foi possível ver o apelo e a força “da massa” para a “empreitada” do Partido na objetivação da lei natural ou histórica.
            Com toda certeza, esse livro de Hannah Arendt é um clássico para se entender o Nazismo, o Fascismo e o Comunismo Soviético, que não deve passar em branco para qualquer graduando de Ciências Sociais que pretenda entender as organizações políticas contemporâneas, fazendo assim, obrigatória a sugestão de leitura completa desse livro.

REFERÊNCIA

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Algumas considerações sobre o Humor a partir do “Seria trágico... se não fosse cômico: humor e psicanálise”

FERNANDO LUIZ DUARTE JUNIOR

Algumas considerações sobre o Humor a partir do “Seria trágico... se não fosse cômico: humor e psicanálise”
           
            A partir do texto “Seria trágico... se não fosse cômico: humor e psicanálise”, recortado à Apresentação e ao artigo “Perder a vida, mas não a piada” de Daniel Kupermann, podemos elevar à discussão corriqueira, nesses tempos de simbiotização entre programas de entretenimento televisivo e a comédia, questões da psicanálise freudiana sobre o tal famigerado “humor negro”.
            Na Apresentação, podemos ver que os autores (Abrão Slavutzky e Daniel Kupermann) procuram resgatar a visão de Freud sobre o humor, identificando nela uma positividade da qual já não temos mais tanta certeza, pois os recentes casos televisivos como o de Rafinha Bastos, Danilo Gentili e o menos “demonizado”, e agora “globalizado”, Marcelo Adnet, nos indicam uma certa controvérsia quanto a natureza e a função do humor.
            Aos não familiarizados com o mundo do humor de massa, em 2011 o humorista carioca, até então contratado da MTV, Marcelo Adnet, conhecido por suas performances de paródia e imitação, caricaturização e forte expressão crítica, fez uma “piada” em um quadro de seu programa utilizando o público autista como “alvo”, no qual teve que se retratar ele e a emissora, emitindo uma nota na qual dizia que “a esquete ‘Casa dos autistas’ ultrapassou limites aceitáveis do humor”.
            No mesmo ano do caso de Adnet, o gaúcho Rafinha Bastos foi pego “com a mão nas calças” por ter feito uma “piada de mau gosto” sobre garotas, supostamente feias, que são estupradas. A piada não passou na vida do “humorista” sem lhe causar arranhões, porém parece que sua vida seguia normalmente, até que em pleno programa ao vivo que participava na Rede Bandeirantes, poucos meses depois, ele soltou a piada que mudaria sua vida e lhe renderia uma expulsão da emissora e um processo da cantora Wanessa Camargo, “alvo” de sua piada.
            Pouco tempo depois, seu ex colega de emissora e sócio de uma casa de shows humorísticos, o andreense Danilo Gentili, foi o alvejado com as críticas. Danilo Gentili aproveitou uma notícia que saíra em um jornal de São Paulo sobre a implantação de uma estação de metrô em um bairro “nobre”, com um público “distinto” da cidade, para fazer uma “piada” com o público judeu. O “humorista” não perdeu o emprego mas deu uma sumida de alguns quadros de seu antigo programa, retornando depois com um triunfal Talk Show no qual ele é o entrevistador. Hoje ele é uma espécie de Jô Soares da Band.
            Esses casos, ao qual trago como exemplos, servem para nos mostrar como o humor traz em si certa ambiguidade à qual nem todos estão familiarizados; nem com sua ambiguidade, nem com sua outra possibilidade. É o que os autores estão no texto chamando de visões de realidade unilaterais que demonstram a incapacidade de entender uma piada ou o que ela revela de dom, de possibilidade de existência, de felicidade, de alegria, de criação, de potência.
            É certo que vivemos em um período de falsa rigidez, de uma rigidez disfarçada, no que consiste na quebra de paradigmas, de verdade científica e autoridades dogmáticas, fruto, mesmo que em controvérsias do Iluminismo, Idealismo e Romantismo Alemão. Porém, essas denúncias das autoridades, das verdades, dos paradigmas, nos puseram diante do nada, ao qual todos ficamos angustiados e tememos sua face sem face. Essa angústia diante do nada nos remete à criação de raízes, identificações, tentativas de apego a algo que nos dê uma sensação de conforto e segurança, que nos dê uma direção para além de nós mesmos.
            Giddens (2002) nos indica essa tentativa de criação de esperança diante da falta de segurança ontológica e da ansiedade existencial maximizada nas nossas sociedades modernas, cujo nós mesmos criamos e esquecemos. Inúmeras outras leituras poderiam ser feitas nesse sentido, como Kierkigaard, Nietzsche, Sartre, Beauvoir e Freud, que nos indicam a potência humana diante do nada e o esquecimento de si nas suas próprias criações. A maioria dos homens (e mulheres) parece querer esquecer que a responsabilidade por suas vidas é de suma característica individual, pelo menos do ponto de partida espiritual.
            O que estou querendo afirmar, junto com os autores do texto “Seria trágico... se não fosse cômico: humor e psicanálise”, é que as pessoas esqueceram-se da dimensão mais “essencial” de suas vidas e de si próprias como direcionadoras de suas vidas, no que consiste no reconhecimento de suas responsabilidades diante de suas finitudes e do dado. Se somos “jogados” no mundo quando nascemos, quando crescemos, ou quando nos tornamos adultos, não é totalmente sem um suporte anterior nem que diga respeito aos outros, mas, se somos “jogados”, então estão nos dando a oportunidade de nos fazer, como queremos, como desejamos, ou pelo menos deveríamos querer ou desejar.
            Com isso, questiono-me se estamos mesmo vivendo em uma sociedade menos rígida, ou se a “falsa rigidez” a qual afirmei antes, não seria apenas uma ilusão criada pelas máquinas repressivas, sejam elas estatais, corporativas ou de classe. (as classes, as corporações, o estado, podem controlar, regular ou limitar o humor?). Com tudo isso que foi dito e com os exemplos dos três humoristas que citei, fico com outras questões: existe um limite para o humor?, existe um humor que seja verdadeiro, autêntico, válido, e um humor (no caso não-humor), que seja falso, não verdadeiro?, o que é o humor?
            Os autores, na Apresentação, nos dizem que a Piada e o Humor são manifestações do Witz. Sendo o Witz, o termo alemão para identificar o que “francêsmente” chamamos de espírito, que qualificamos com espirituoso.[1] No decorrer da Apresentação, eles vão tentando nos dar identificações do que seja o Witz e o Humor em uma visão freudiana, pouco estudada pelos psicanalistas, mas segundo os autores de suma importância, para Freud e para a Psicanálise. Abaixo vejamos algumas citações sobre o assunto:

Ainda que considerado, pelo próprio Freud, um dom precioso e raro, o humor foi justamente a dádiva desprezada ao longo do processo de institucionalização da psicanálise. (Slavutzky e Kupermann, 2005, p. 7)

Se o humor é, como queria Freud, teimoso e rebelde, servindo assim para ampliar os horizontes do campo psicanalítico, isso não implica que seja arrogante. Ao contrário, é uma modalidade de percepção ativa que capacita o sujeito a rir não apenas do outro, mas também, e sobretudo, de si mesmo, gerando potência e alegria onde se esperava apenas dor. Seria trágico... se não fosse cômico. Pode-se ainda defini-lo como a habilidade de se aceitar que toda verdade é parcial, que o ser humano é insuficiente e que é onde a vida aparenta imperfeição que vale entoar uma boa gargalhada. (Slavutzky e Kupermann, 2005, p. 8)

O humor afirma a liberdade do pensamento, não tendo propriedade para valorizar ou reino a defender. (Slavutzky e Kupermann, 2005, p. 9)

            Como disse anteriormente, o texto até então apresenta apenas visões muito positivas sobre o humor, identificando nele um ótimo papel social e individual. É identificado à ele o papel de afirmar a liberdade de pensamento, sendo ele próprio a manifestação do espírito livre, criador e autenticamente existencial. O humor revela as discrepâncias, o contradito, o inaudito, o escondido, o metamorfoseado, o eufemisado. O humor afirma o relativismo da verdade, o posicionamento de verdades, a finitude da existência humana e ativa a potencialidade de vida. O humor entrega, revela, desvela, denuncia, ele é rebelde, teimoso, crítico, cria alegria onde se esperava apenas dor.
            Percebo que os autores também ligam o papel do humor ao papel da maiêutica socrática, embora em Sócrates a verdade viria à luz através do exercício lógico-analítico, puramente racional, logocêntrico, enquanto que o humor freudiano teria mais o que a tradição heideggeriana chamaria de logopático, ao qual traz esclarecidamente influências do poeta romântico alemão Heinrich Heine, porém com o mesmo papel de identificação com “aquilo que é mais verdadeiro”, em contraposição denunciativa da “verdade racional-científica” da tradição iluminista.
            Vivemos em um mundo complexo onde as contradições estão expostas, ao mesmo tempo que escondidas. Mundo complexo onde muitos tem muitas informações, ao mesmo tempo que não sabemos a natureza dessas informações (se não são deformações). Estamos no futuro imaginado de nossos pais, porém sem os carros voadores e os robôs domésticos. Estamos no lugar que não possui mais a certeza como certeza. O que nos resta?
            A piada, segundo os autores, não é uma ofensa pois o humorista, no momento que conta uma piada, “ousa ri de si mesmo”, de sua condição de ser finito, “jogado”, sem pai, “órfão”. A piada desconstrói a naturalização e descobre as “facetas originais e inesperadas da nossa experiência de viver” (p. 10). Dizem os autores (2005, p. 12): “de posse do humor, somos todos piratas a contrabandear sentidos inusitados para a construção de um estilo de existência às margens da seriedade unilateral que nos é socialmente imposta”. A piada é a ousadia do adolescente rebelde que vê na autoridade a contradição de uma existência humana que tenta se impor como sobrehumana.
            Poderíamos simplesmente desculpar os humoristas, dizer que eles estão colocando “suas crianças” ou “seus adolescentes” para fora e deixar assim mesmo, parar de criticar suas performances, desresponsabiliza-los por suas atitudes, falas e opiniões, porém, vivemos em um mundo profundamente moralizante, como na tentativa de resgate da segurança e do conforto que falei anteriormente. Os julgamentos morais, éticos, políticos e até estéticos, fazem parte do universo do humor.
            O jornalista carioca Mauricio Stycer, “blogueiro”, escreveu em seu blog um artigo em maio de 2011 com o seguinte título: “Em defesa do humor sem limites”. Neste artigo o jornalista procura argumentar que a piada, inclusive as piadas de “humor negro”, faz parte da democracia, e poder conta-la é um direito. No blog ele sugere um decálogo para o qual as pessoas deveriam olhar e procurar segui-lo como um exercicio da democracia. Abaixo estão os dez passos como encontra-se no blog:

Como reagir a uma piada incômoda, de mau gosto, ofensiva?
1. Tapar os ouvidos.
2. Se a piada tiver sido dita no rádio ou na TV: mudar de estação ou desligar o aparelho.
3. Dita no palco de um teatro: levantar da poltrona, sair e pedir o dinheiro do ingresso de volta.
4. Lida num jornal, revista ou site: mudar de página.
5. Escrita num livro: não compre. Se já tiver comprado, devolva o livro.
6. Mandar uma carta ao veículo de comunicação que abrigou a piada ofensiva, expondo os motivos do seu descontentamento e, se for o caso, ameaçar nunca mais ouvir, ver ou ler quem abrigar piadas deste tipo.
7. Organizar um abaixo-assinado, de maneira a aferir quantas pessoas, como você, se sentiram ofendidas pela piada ruim, e enviar ao veículo de comunicação que deu abrigo a ela.
8. Repetir o procedimento dos pontos 6 e 7, mas dirigir suas reclamações às empresas que patrocinam o humorista que te ofendeu e/ou o veículo de comunicação que abriga as suas piadas.
9. Procurar um advogado ou o Ministério Público para avaliar se a piada ruim constitui crime de algum tipo e, se for o caso, ingressar com uma ação contra o autor da ofensa.
10. Batalhar junto aos seus representantes no Congresso para que eles lutem para tipificar como crime o tipo de humor que te ofende. Se a sua reclamação for socialmente majoritária, você tem chance de vê-la virar lei.[2]

            O autor do artigo no blog me parece querer ser imparcial, mesmo defedendo o direito do humorista de contar uma piada de “mau gosto”, ou “humor negro”, pois para ele “querer estabelecer o que pode ou não ser dito, quais temas podem ou não ser objeto de piadas, me parece antidemocrático”.
            No artigo “Perder a vida, mas não a piada”, o autor, Daniel Kupermann, resgata o pensamento de um biógrafo de Freud, Peter Gay, para indicar o próprio humor de Freud, como um sarcasmo que traz em si a ambiguidade de “o humor parecer apontar tanto para uma extrema vitalidade quanto para uma mortificação, em uma estranha oscilação entre vida e morte.” (p. 22). Sendo essa “ambivalência”, nas palavras do autor, o próprio do “tragicômico”. Neste sentido ele escreve:

(...) uma autêntica política do Witz: a dimensão transgressora do recalcamento viabilizando novas possibilidades identificatórias e sublimatórias, ou seja, novos modos de sociabilidade. Nesse sentido, ao se transmitir um chiste ou um dito humorístico, busca-se compartilhar a crítica social e a denúncia das hipocrisias que sobrevivem em qualquer grupamento, bem como a evidência da farsa embutida na tentativa de se eternizar toda e qualquer idealização (...). Porém, a ação subversiva do Witz cobra o preço de um movimento de desterritorialização, sempre angustiante em certa medida. Trata-se, assim, no exercício libertário promovido pelo espírito, de uma experiência de angústia coincidente com a emergência de processos criativos. (KUPERMANN, 2005, p. 24-25)

            Para Freud, segundo Kupermann, o humor é o que há de mais ousado, mais rebelde, direi até, redentor, pois poder rir daquilo que parece trágico, mesmo como no exemplo do condenado a morte que no cadafalso faz uma piada com sua saúde, é o que há de mais “essencial”, é o triunfo do espírito sobre o destino. Aqueles que não entendem essas piadas, esse humor, são “doentes” que não enxergam outras possibilidades e a criatividade, a potencialidade de existência e vida ali colocado, são vítimas da imposição de compreensão unidimensional da realidade, da seriedade de um mundo social que visa a produtividade maquinariamente que maximixa as angústias e não deixa saída visível.
            Se o triunfo do espírito é uma saída para a vida angustiante, no caso o riso, o humor, a piada, disso sabemos que não temos resposta exata e que gerou diversas controvérsias e brigas durante a história do ocidente, desde a Grécia Antiga. Porém, os autores querem deixar a entender que sim, o triunfo do espírito, do humor, é uma saída para a angústia e a dor, para as perturbações, é a redenção. Uma das melhores características dos sujeitos é aprender a rir com a vida.

REFERÊNCIAS

Principal:
SLAVUTZSKY, Abrão e KUPERMANN, Daniel (org). Seria trágico… se não fosse cômico: humor e psicanálise. Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 2005.

Secundária:
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.

Virtuais:
http://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br/2011/05/17/em-defesa-do-humor-sem-limites/
http://entretenimento.r7.com/famosos-e-tv/noticias/rafinha-bastos-faz-piada-de-mau-gosto-sobre-estupro-20110508.html
http://www.record.com.br/autor_entrevista.asp?id_autor=4598&id_entrevista=175





[1] O Minidicionário Sacconi de Língua Portuguesa nos dá como definição de espirituoso: “adj. 1. Que contém muito álcool. 2. Engraçado. 3. Engenhoso.” O dicionário online de português nos dá como definição de espirituoso: “adj. Característica do que ou de quem é engraçado; que faz graça de modo inteligente; vivaz, alegre: ditos espirituosos. Que representa ou demonstra inteligência; culto; frase espirituosa; argumento ou cometário espirituoso. Que possui álcool; alcoólico: licor espirituoso.”
[2] Para ver o artigo completo, cf: http://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br/2011/05/17/em-defesa-do-humor-sem-limites/. Data de acesso: 16 de julho de 2013.