quarta-feira, 17 de junho de 2020

O que somos? Para onde vamos? (ou, Reflexões sobre o Conservadorismo)


Por: Fernando Duarte

       Alguém duvidaria que os seres humanos são seres, a princípio, livres, com uma liberdade como um dado substancial de sua existência enquanto ser humano?
       Alguém duvidaria que os seres humanos são seres, a princípio, racionais, com a possibilidade de compreender e entender o que se diz e se vê sobre o mundo, sobre ele mesmo e sobre o que constitui a própria existência de seu pensamento?
       No século XXI não ousaríamos pensar que os seres humanos são apenas objetos do acaso, ou consequências de ordens e forças sobrenaturais que determinam a sua totalidade.
       Deve ser clara a perspectiva sobre os seres humanos serem seres racionais e livres, em outras palavras, autônomos e sujeitos de ação, que podem inclusive, pensar sobre o mundo, sobre si e também sobre seu próprio pensamento, seres que têm a possibilidade de se perceberem a si mesmos como tais e que têm diante de si a possibilidade, e a quase obrigação, de fazerem a si mesmos, e com outros que também se fazem a si mesmos, construir o que se pensa que deva ser a estrutura do mundo social e cultural.
       As formas de organizar a sociedade, as linhas das leis e constituições que regulam, normatizam e dão direções para o convívio social não são entidades sobrenaturais, nem mesmo naturais, são construções de sujeitos que historicamente se perceberam como capazes de, racionalmente e livremente, traçá-las.
       O esquecimento ou negação sistemática e organizada da possibilidade de construção por sujeitos livres e racionais das linhas das leis e constituições, tem objetivos, tais como o de não deixar mudar, o que se pode mudar, quando se deve mudar.
       A possibilidade da mudança é uma regra, quase que lei natural, da ordem do mundo, dos seres humanos e também das leis e constituições.
       O caminho da mudança é um caminho permanente. Não há possibilidade de estagnação e fixidez, embora se queira estacionar, quando se percebe que não se deve mudar, por questões outras, como o reconhecimento do privilégio construído historicamente para determinadas classes, das quais se faz parte os defensores da não mudança.
       As mudanças podem ter um caráter ruim ou bom, para determinadas classes. O que é preciso se refletir é o que se quer construir e defender de uma forma geral. Não podemos viver sempre uma “eterna luta de classes” que buscam se alternar ou se perpetuar no poder institucional e legitimado que tem o dever de “proteger” ou mesmo de mudar por vias legais as leis e a constituição.
       O reconhecimento dos seres humanos como livres e racionais, tem que abordar também o reconhecimento de todo ser humano, seja ele preto, pardo, mestiço, asiático, africano, homem, mulher, transgênero, transexual, ou que seja casado com uma pessoa do mesmo sexo ou com mais de uma pessoa.
       O reconhecimento do direito de ser reconhecido como ser humano, livre e racional, sobretudo, alguém capaz e com possibilidade de mudar e querer mudar o que precisa ser mudado, quando precisa ser mudado, não pode esbarrar no medo do curso natural da vida e da história.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE O FILME ANATOMY OF A LOVE SEEN

OBSERVAÇÃO: Encontrei esse texto perdido entre meus documentos antigos do Notebook. Ele foi escrito como um trabalho para uma disciplina do meu curso de Graduação em Ciências Sociais. Ele já tem alguns anos, porém, as dúvidas ainda persistem.

Fernando Duarte

           O filme que escolhi é um filme estadunidense de 1 hora e 20 minutos, lançado em 2014 que foi dirigido e escrito por Marina Rice Bader. O filme tem como título em inglês Anatomy of a love seen, que em português poderia ser traduzido como “Anatomia de uma cena de amor”. Nele podemos ver a história de um casal de mulheres que se apaixonam ao atuarem em uma cena de sexo para um filme.
            As duas atrizes principais, Sharon Hinnendael e Jill Evyn, fazem duas atrizes atuando em uma cena de sexo para um filme e que acabam se apaixonando uma pela outra. Provavelmente a cena íntima, a troca de olhares, as emoções que foram postas e que estavam se entrelaçando no momento, impulsionaram as energias de ambas para dali prosseguirem com um relacionamento.
            No filme em si, não no supostamente filmado, não vemos o desenrolar nem o aprofundamento da relação das duas atrizes, mas inferimos que tiveram uma história e que passaram um tempo juntas, “oficialmente”, mas que por algum motivo, brigas acabaram com o relacionamento que parecia ser feliz e de “um amor verdadeiro” como fala a diretora/produtora do filme que está sendo gravado pelas duas atrizes.
            A diretora/produtora do filme, sabendo do rompimento do relacionamento entre as duas atrizes, decide à revelia tentar juntar novamente o casal que ela admira, fingindo que um contrato de transmissão exige uma refilmagem da cena de sexo entre as duas. A tentativa da diretora é fazer com que a cena que fez com que as duas atrizes se apaixonassem pudesse novamente fazer ressurgir o sentimento que poderia ainda estar presente, porém “brevemente” escondido, mesmo com o rompimento do relacionamento.
            No artigo “Ser ou estar homossexual: dilemas de construção de identidade social” de Maria Luiza Heilborn, podemos ver uma discussão sobre a construção da identidade social a partir da definição ou determinação, mesmo que simbólica, de uma identidade ancorada nos comportamentos e hábitos sexuais, tese reforçada por Michel Foucault em seu História da Sexualidade I: a vontade de saber, no sentido de caracterização do pensamento social moderno ocidental.
            No texto de Heilborn, ela vai traçando sua teoria e análise da construção da identidade social com base no entendimento da sexualidade e do comportamento de “mulheres que mantém relações sexuais com outras mulheres” (MxM ou MsM) da classe média do Rio de Janeiro. Aqui, com este texto, podemos ver as dimensões características do mesmo grupo social dessas mulheres em paralelo com as atrizes do filme: duas atrizes brancas, por volta dos seus 30 anos, e com uma carreira “liberal”, a profissão de atriz.
            A caracterização do grupo social, com os marcadores sociais semelhantes, como os de classe social, profissão, idade, proporcionam um paralelo mais real no que concerne à análise das possibilidades de vivência da sexualidade e da identidade. Eis que tanto no filme quanto no artigo, através dos relatos que a autora colhe, que a vivência dos comportamentos ou relacionamentos que envolvem parceiros do mesmo sexo nem sempre se determinam ou se encaixam nos padrões idealizados ou supostamente fixados por uma estrutura pré-moldada ou que sobrevive para além dos indivíduos inseridos na relação atual.
            No filme não podemos saber certamente se as atrizes já se identificavam como lésbicas, ou se tinham práticas homoeróticas antes do apaixonamento entre as duas com a cena do sexo. Não fica claro se já conheciam as orientações sexuais uma da outra ou se fixavam-se em orientações pré-postas à relação. Assim como também não podemos identificar características estereotipadas do que se poderia identificar como arquétipo direto de pessoas lésbicas em nenhuma das duas.
            Como Miriam Pillar Grossi escreve em seu artigo “Identidade de gênero e sexualidade”, desde os anos 1960 que os estudos de gênero e sexualidade tentam desmistificar as relações diretas e determinantes entre “sexo”, sexualidade, identidade de gênero e também orientação sexual. Os movimentos feministas, principalmente, e com a inserção e maior libertação da mulher nos estudos acadêmicos e científicos, muitas das teorias ou especulações que se fazia ou se fez sobre o corpo, o desejo, a sexualidade e a identidade de gênero no geral e especificamente sobre a mulher passaram a ser melhor explicadas e analisadas, passando-se até de muitos pontos de vista centrados no macho/homem com seu padrão de análise e visão, para os pontos de vista femininos, dando assim outras possibilidades de leitura e olhar sobre o tema, possibilitando até as desconstruções teóricas e determinantes do padrão heteronormativo e de ligação natural entre sexo e gênero.
                  Grossi escreve também que a partir dos anos 1980, com o crescimento dos estudos sobre as mulheres, é demonstrado que “não é  possível  falar  de  uma  única  condição feminina no Brasil, uma vez que existem inúmeras diferenças, não apenas de classe, mas também regionais, de classes etárias, de ethos, entre as mulheres brasileiras”, alertando-nos que os estudos sobre as mulheres podem até pretenderem ser “universalistas” no que consiste em algo geral da mulher, porém não podem ser “essencialistas”, como nos diz Heilborn, ou mesmo Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo. É preciso perceber a variabilidade, a flexibilidade e as especificidades do ser mulher, nas classes sociais, entre gerações, regiões e também no que consiste às suas orientações sexuais ou mesmo a ainda delicada condição das mulheres “trans”[1].
              Henrietta Moore em seu “Compreendendo sexo e gênero” também nos alerta sobre as contradições dos discursos biologizantes e socializantes dos seres humanos e da sexualidade, nos lembrando que no belo estudo Sexo e Temperamento de Margaret Mead já havia uma desmitificação do “eterno feminino” ou mesmo “eterno masculino”, como uma essência independente de tudo o mais ao redor, ou mesmo as vontades dos sujeitos.
                  Ser homem, ser mulher, ser gay, lésbica ou hétero, não estaria tão mais ligado à biologia do que ao social ou mesmo às vontades individuais dos sujeitos em situação de escolhas dentro dos campos de possibilidade que se abrem às suas vidas. Cada uma das ciências que se propõe a estudar ou falar sobre, precisa entender suas limitações e também suas aberturas para os diálogos interdisciplinares e principalmente para o que os sujeitos têm a falar sobre si mesmos e o que sentem.
            O filme, junto aos textos e às aulas da disciplina, possibilita-nos refletir e questionar sobre todos esses assuntos, como por exemplo: “O que é ser mulher?”, “o que é ser lésbica?”, “ter um relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo me faz gay/lésbica?”, “O que é ser bissexual?”, “É preciso performar um certo gênero, para ser compatível com certas expectativas e orientação sexual?”... São questões que mais se reflete e se debate do que de fato se encontra respostas conclusivas, onde quer que se vá, ou que texto se leia. O filme é uma forma de levantar o debate e nos fazer sempre lembrar que quando falamos de seres humanos, falamos de possibilidades e também de sexualidade, expectativa, performances... amor. 
                 No filme vimos duas mulheres que se apaixonam, não por necessariamente serem lésbicas. Também vimos que relacionamentos, sejam eles de quem for, sempre passarão por momentos complexos e simples, desde a troca de olhares, o tocar na pele, os beijos, o apaixonamento, as relações com as famílias, as brigas por ciúmes ou problemas com vidas passadas que interferem em como pensamos sobre nós mesmos e nossos relacionamentos, a exemplo da discussão que as duas atrizes têm em certo momento de pausa da gravação, quando são desveladas algumas verdades e medos das duas, revelando alguns pontos mal resolvidos do passado de uma delas.

REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1988.
GROSSI, Miriam Pilar. Identidade de gênero e sexualidade. (texto distribuído pelo professor em aula).
HEILBORN, Maria Luiza. “Ser ou Estar Homossexual? Dilemas de construção de identidade social” in PARKER, Richard & BARBOSA, Regina (orgs). Sexualidades Brasileiras. RJ: Relume - Dumará, 1996.
MOORE, Henrietta. Compreendendo sexo e gênero. (texto distribuído pelo professor em aula).



[1] Diz-se “mulheres trans”, a grosso modo e em geral, pessoas que nascem com o aparelho/instrumento sexual biológico designado para os homens na sociedade, porém não se identificam psicologicamente, culturalmente, ou performaticamente com esse gênero, passando a se designar e se identificar com o gênero oposto (mulher) ao definido socialmente ao sexo/aparelho/instrumento sexual biológico de nascença. Em outras palavras: “transformando-se em mulher” aqueles que “deveriam ser homens” (como muitos que concordam com a designação social relatam).