Fernando Duarte
O
filme que escolhi é um filme estadunidense de 1 hora e 20 minutos, lançado em
2014 que foi dirigido e escrito por Marina Rice Bader. O filme tem como título
em inglês Anatomy of a love seen, que
em português poderia ser traduzido como “Anatomia de uma cena de amor”. Nele
podemos ver a história de um casal de mulheres que se apaixonam ao atuarem em
uma cena de sexo para um filme.
As duas atrizes principais, Sharon
Hinnendael e Jill Evyn, fazem duas atrizes atuando em uma cena de sexo para um
filme e que acabam se apaixonando uma pela outra. Provavelmente a cena íntima,
a troca de olhares, as emoções que foram postas e que estavam se entrelaçando
no momento, impulsionaram as energias de ambas para dali prosseguirem com um
relacionamento.
No filme em si, não no supostamente
filmado, não vemos o desenrolar nem o aprofundamento da relação das duas
atrizes, mas inferimos que tiveram uma história e que passaram um tempo juntas,
“oficialmente”, mas que por algum motivo, brigas acabaram com o relacionamento
que parecia ser feliz e de “um amor verdadeiro” como fala a diretora/produtora
do filme que está sendo gravado pelas duas atrizes.
A diretora/produtora do filme,
sabendo do rompimento do relacionamento entre as duas atrizes, decide à revelia
tentar juntar novamente o casal que ela admira, fingindo que um contrato de
transmissão exige uma refilmagem da cena de sexo entre as duas. A tentativa da
diretora é fazer com que a cena que fez com que as duas atrizes se apaixonassem
pudesse novamente fazer ressurgir o sentimento que poderia ainda estar presente,
porém “brevemente” escondido, mesmo com o rompimento do relacionamento.
No artigo “Ser ou estar homossexual:
dilemas de construção de identidade social” de Maria Luiza Heilborn, podemos
ver uma discussão sobre a construção da identidade social a partir da definição
ou determinação, mesmo que simbólica, de uma identidade ancorada nos
comportamentos e hábitos sexuais, tese reforçada por Michel Foucault em seu História da Sexualidade I: a vontade de
saber, no sentido de caracterização do pensamento social moderno ocidental.
No texto de Heilborn, ela vai
traçando sua teoria e análise da construção da identidade social com base no
entendimento da sexualidade e do comportamento de “mulheres que mantém relações
sexuais com outras mulheres” (MxM ou MsM) da classe média do Rio de Janeiro.
Aqui, com este texto, podemos ver as dimensões características do mesmo grupo
social dessas mulheres em paralelo com as atrizes do filme: duas atrizes
brancas, por volta dos seus 30 anos, e com uma carreira “liberal”, a profissão
de atriz.
A caracterização do grupo social,
com os marcadores sociais semelhantes, como os de classe social, profissão,
idade, proporcionam um paralelo mais real no que concerne à análise das
possibilidades de vivência da sexualidade e da identidade. Eis que tanto no
filme quanto no artigo, através dos relatos que a autora colhe, que a vivência
dos comportamentos ou relacionamentos que envolvem parceiros do mesmo sexo nem
sempre se determinam ou se encaixam nos padrões idealizados ou supostamente
fixados por uma estrutura pré-moldada ou que sobrevive para além dos indivíduos
inseridos na relação atual.
No filme não podemos saber
certamente se as atrizes já se identificavam como lésbicas, ou se tinham práticas
homoeróticas antes do apaixonamento entre as duas com a cena do sexo. Não fica
claro se já conheciam as orientações sexuais uma da outra ou se fixavam-se em
orientações pré-postas à relação. Assim como também não podemos identificar
características estereotipadas do que se poderia identificar como arquétipo
direto de pessoas lésbicas em nenhuma das duas.
Como Miriam Pillar Grossi escreve em
seu artigo “Identidade de gênero e sexualidade”, desde os anos 1960 que os
estudos de gênero e sexualidade tentam desmistificar as relações diretas e
determinantes entre “sexo”, sexualidade, identidade de gênero e também
orientação sexual. Os movimentos feministas, principalmente, e com a inserção e
maior libertação da mulher nos estudos acadêmicos e científicos, muitas das
teorias ou especulações que se fazia ou se fez sobre o corpo, o desejo, a
sexualidade e a identidade de gênero no geral e especificamente sobre a mulher
passaram a ser melhor explicadas e analisadas, passando-se até de muitos pontos
de vista centrados no macho/homem com seu padrão de análise e visão, para os
pontos de vista femininos, dando assim outras possibilidades de leitura e olhar
sobre o tema, possibilitando até as desconstruções teóricas e determinantes do
padrão heteronormativo e de ligação natural entre sexo e gênero.
Grossi
escreve também que a partir dos anos 1980, com o crescimento dos estudos sobre
as mulheres, é demonstrado que “não é
possível falar de
uma única condição feminina no Brasil, uma vez que
existem inúmeras diferenças, não apenas de classe, mas também regionais, de
classes etárias, de ethos, entre as mulheres brasileiras”, alertando-nos que os
estudos sobre as mulheres podem até pretenderem ser “universalistas” no que
consiste em algo geral da mulher, porém não podem ser “essencialistas”, como
nos diz Heilborn, ou mesmo Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo. É preciso perceber a variabilidade, a flexibilidade
e as especificidades do ser mulher, nas classes sociais, entre gerações,
regiões e também no que consiste às suas orientações sexuais ou mesmo a ainda
delicada condição das mulheres “trans”[1].
Henrietta
Moore em seu “Compreendendo sexo e gênero” também nos alerta sobre as
contradições dos discursos biologizantes e socializantes dos seres humanos e da
sexualidade, nos lembrando que no belo estudo Sexo e Temperamento de Margaret Mead já havia uma desmitificação do
“eterno feminino” ou mesmo “eterno masculino”, como uma essência independente
de tudo o mais ao redor, ou mesmo as vontades dos sujeitos.
Ser
homem, ser mulher, ser gay, lésbica ou hétero, não estaria tão mais ligado à
biologia do que ao social ou mesmo às vontades individuais dos sujeitos em
situação de escolhas dentro dos campos de possibilidade que se abrem às suas
vidas. Cada uma das ciências que se propõe a estudar ou falar sobre, precisa
entender suas limitações e também suas aberturas para os diálogos
interdisciplinares e principalmente para o que os sujeitos têm a falar sobre si
mesmos e o que sentem.
O filme, junto aos textos e às aulas
da disciplina, possibilita-nos refletir e questionar sobre todos esses
assuntos, como por exemplo: “O que é ser mulher?”, “o que é ser lésbica?”, “ter
um relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo me faz gay/lésbica?”, “O que é
ser bissexual?”, “É preciso performar um certo gênero, para ser compatível com
certas expectativas e orientação sexual?”... São questões que mais se reflete e
se debate do que de fato se encontra respostas conclusivas, onde quer que se
vá, ou que texto se leia. O filme é uma forma de levantar o debate e nos fazer
sempre lembrar que quando falamos de seres humanos, falamos de possibilidades e
também de sexualidade, expectativa, performances... amor.
No
filme vimos duas mulheres que se apaixonam, não por necessariamente serem
lésbicas. Também vimos que relacionamentos, sejam eles de quem for, sempre
passarão por momentos complexos e simples, desde a troca de olhares, o tocar na
pele, os beijos, o apaixonamento, as relações com as famílias, as brigas por
ciúmes ou problemas com vidas passadas que interferem em como pensamos sobre
nós mesmos e nossos relacionamentos, a exemplo da discussão que as duas atrizes
têm em certo momento de pausa da gravação, quando são desveladas algumas
verdades e medos das duas, revelando alguns pontos mal resolvidos do passado de
uma delas.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR,
Simone de. O segundo sexo. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
FOUCAULT,
Michel. História da Sexualidade I: a
vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1988.
GROSSI,
Miriam Pilar. Identidade de gênero e
sexualidade. (texto distribuído pelo professor em aula).
HEILBORN,
Maria Luiza. “Ser ou Estar Homossexual? Dilemas de construção de identidade
social” in PARKER, Richard &
BARBOSA, Regina (orgs). Sexualidades
Brasileiras. RJ: Relume - Dumará, 1996.
MOORE,
Henrietta. Compreendendo sexo e gênero.
(texto distribuído pelo professor em aula).
[1] Diz-se “mulheres trans”, a grosso
modo e em geral, pessoas que nascem com o aparelho/instrumento sexual biológico
designado para os homens na sociedade, porém não se identificam psicologicamente,
culturalmente, ou performaticamente com esse gênero, passando a se designar e
se identificar com o gênero oposto (mulher) ao definido socialmente ao
sexo/aparelho/instrumento sexual biológico de nascença. Em outras palavras:
“transformando-se em mulher” aqueles que “deveriam ser homens” (como muitos que
concordam com a designação social relatam).
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